Não sou normal, confesso
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Não sou normal, confesso

Por Fernando Jorge

Adobe / Globe Staff

Sim, não sou normal, confesso. Afirmei isto no programa de televisão de Edson Ferrarini, do Canal 9, e ele riu muito, ao ouvir a minha confissão.


Primeiro de tudo, declaro: pertenço à religião católica, mas acredito, de modo firme, que todos nós, seres humanos, sem qualquer exceção, somos espíritos materializados. E espíritos de pessoas amadas, já falecidas, nos acompanham, nos ajudam, podem até impedir que o mal nos atinja. Já tive prova disso.


Vou contar um caso impressionante, ocorrido comigo.


Eu era um menino de doze anos. Achava-me no meu quarto, sentado perto da janela aberta, escrevendo numa mesinha. De repente, ouvi um grito prolongado, vindo de fora:


– Fernandooooo!


Pulei da cadeira e mergulhei a cabeça fora da janela bem aberta. Ouvi outra vez o grito:


– Fernandooooo!


Pensei: meu Deus, eu conheço esta voz! A voz vinha do céu, do espaço, e não havia ninguém debaixo da janela, no quintal da casa. Nunca pude me esquecer dessa voz, gritando o meu nome. É de pessoa amiga, que conheci em outra encarnação, acredito...


Mais de dez anos depois, após me tornar chefe da Divisão Técnica de Biblioteca da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (sou bibliotecário com diploma registrado na USP), fui à Assembleia para receber os meus vencimentos de funcionário e não os recebi, devido a uma irregularidade ocorrida na Seção de Contabilidade da Assembleia. Foi na época do recesso parlamentar.


Saí da Assembleia furioso, muito irritado, xingando os deputados, aquele poder. Dizia a mim mesmo:


– Casa de vagabundos! Trabalho o ano inteiro nela e não me pagam os vencimentos! Casa maldita!


O meu sangue de árabe e de espanhol fervia. Tentei pegar um taxi, com o objetivo de ir a uma editora dos meus livros, a fim de ver se conseguia receber algum dinheiro.


Nada! O taxi, não aparecia. E a minha irritação aumentava. Caminhei, suado, bem nervoso. O calor de verão era asfixiante. Parei numa esquina da Avenida Brasil, espumando de raiva. Aí, de súbito, ouvi aquela voz da época dos meus doze anos:


– Fique calmo, fique calmo, fique calmo, você está muito nervoso.


Perguntei em voz alta, na avenida deserta:


– Quem é você? Quem é você? Eu conheço a sua voz, desde quando tinha doze anos!


A voz repetiu:


– Fique calmo, fique calmo, fique calmo.


Ela, a voz, foi me acalmando. Perguntou, em seguida:


– Você está vendo aquele homem?


Olhei e vi na avenida deserta um homem há cerca de duzentos metros de distância. A voz acrescentou:


– Aquele homem tem um espírito diabólico e vai querer brigar com você, mas pelo amor de Deus, não reaja, não reaja, não reaja!


Vi então a coisa mais estranha da minha vida. Aquele homem veio na minha direção de maneira veloz, porém andando de costas! Sem mostrar a cara, de costas, começou a me empurrar, rosnando:


– Eu odeio você! Eu odeio você.


Veio vindo um taxi. Fiz um sinal e o carro parou na minha frente. Abri a porta do taxi e o homem voltou-se para mim, olhando de frente e gritando:


– Eu odeio você! Odeio! Odeio!


Os seus olhos chispavam, vermelhos, cobertos de sangue, e suas unhas eram compridas, pontudas, negras. O taxista, ao vê-lo, começou a tremer. As suas mãos tremiam sem parar. Dentro do carro, fechei a porta do veículo e o monstro começou a dar socos no vidro da porta. Gritei para o taxista:


– Toque o carro, toque, senão ele vai arrebentar o vidro, toque!


Com muito custo, pálido, tremendo, o taxista conseguiu movimentar o carro. O homem começou a correr atrás do carro, erguendo os braços, berrando. E o rapaz do taxi perguntou, tremulo:


– O senhor estava brincando com ele? Por que está tão calmo?


Respondi, tranquilo:


– Fui avisado por um espírito amigo que isto ia acontecer. Achava-me muito nervoso e ele me acalmou.


O taxista respondeu:


– Nunca vi, na minha vida, um homem tão horroroso como este homem. Ele parece o diabo.


Calmo, seguro, expliquei ao taxista:


– Ele é o diabo. Se o espírito não tivesse me acalmado e eu reagisse à fúria do monstro, eu agora estaria morto, acredito.


Narrei tal episódio da minha vida ao amigo Ronaldo Côrtes e ele, comovido, soltou estas palavras:


– Creio que este bom espírito, seu leal amigo, vai ajudá-lo a escrever o seu romance Eu amo os dois.


De fato, uma força misteriosa me impeliu a produzir a obra, de um só jato, em apenas quarenta dias. Ronaldo acertou em cheio.


Fernando Jorge é jornalista, escritor, dicionarista e enciclopedista brasileiro. Autor de várias obras biográficas e históricas que lhe renderam alguns prêmios como o Prêmio Jabuti de 1962. É autor do livro “Eu amo os dois”, lançado pela Editora Novo Século.

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