Por Fernando Jorge
Depois de exercer o cargo de bibliotecário-chefe da Assembleia Legislativa de São Paulo (sou formado em Biblioteconomia pela USP), obtive o cargo de diretor da biblioteca do Poder Legislativo estatual. Eu tinha mais de dez funcionários ao meu dispor, inclusive três bibliotecárias, hábeis na classificação de livros pelo sistema de Melvil Dewey.
Procurei aumentar o acervo de livros, torná-lo mais rico, completo, mandando comprar obras valiosas, importantes.
Uma tarde fui chamado para ir à presença do subdiretor da Assembleia. Recebeu-me no seu gabinete, com cara pomposa, de sujeito arrogantes. Vi logo que era metido a besta e tive vontade de dizer a ele:
– Vá a m...
Contive-me, é claro, mas não me enganei, era mesmo metido a besta, arrogante, convencido. Ao lado dele, de pé, achava-se uma bela mulher, exibindo saia curta e pernas brancas, que me perturbaram, confesso. Ela me olhava com desdém, um certo desprezo. O diretor então me disse, de maneira dura, enérgica:
– Senhor Fernando Jorge, o senhor está mandando comprar livros que não são jurídicos para a biblioteca da Assembleia. O senhor só pode mandar comprar livros de Direito.
Respondi num tom de voz firme:
– Estou cumprindo o regulamento.
Ele rebateu:
– Não está, o senhor só deve mandar comprar obras de caráter jurídico, livros de Direito, e está comprando livros de literatura, de história, de sociologia, de arte.
Senti outra vez vontade de mandá-lo a m..., porém expliquei:
– Estou agindo de modo correto. Já vi que o senhor ignora que a biblioteca desta casa se tornou pública, devido a um ato da mesa, e passou a ser frequentada por estudantes, professores, pesquisadores, jornalistas, etc. Portanto agora é uma biblioteca eclética e não especializada. Assim sendo, repito, estou procedendo de maneira correta.
O diretor, ao ouvir isto, mostrando a sua ignorância, ficou com o aspecto de bunda murcha, cheia de pulgas, mosquitos e piolhos.
Saí alegre do seu gabinete, assobiando e pensando assim: que sujeito burro, mal informado, que fora ele deu!
Durante 35 anos fui chefe e em seguida diretor da Divisão Técnica da Biblioteca da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e nunca vi, nesse espaço de tempo, qualquer deputado frequentá-la.
Os nossos políticos, quase todos, sofrem de bibliofobia, de horror aos livros, e só entram nas livrarias nos dias de chuva, para não apanharem resfriados, gripes ou pneumonias. Eu disse isto ao Jô Soares, quando ele me entrevistou pela segunda vez.
Fernando Jorge é jornalista, escritor, dicionarista e enciclopedista brasileiro. Autor de várias obras biográficas e históricas que lhe renderam alguns prêmios como o Prêmio Jabuti de 1962. É autor do livro “Eu amo os dois”, lançado pela Editora Novo Século.
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